Os
passos hesitantes ecoavam pelo silêncio na noite, o vento gelado sacudindo a
poeira que se acumulava no chão, quantos séculos fazia desde que havia
estado ali? Limpou como pôde a sujeira do rosto, sentindo um frio na
barriga ao qual já estava acostumado, mas do qual ao mesmo tempo tinha saudade. Era
um calafrio bom que percorria sua espinha.
Fechou os
olhos, se arrependendo imediatamente ao ouvir o barulho das explosões e dos
tiros, o cheiro do sangue -agora seco- invadindo suas narinas e trazendo a
sensação de náusea de volta, sensação essa que ele suprimiu, faltava
pouco... Tão pouco!
Deu mais
alguns passos, a janela acesa já sendo detectada por seus olhos, longe, quase
no horizonte, mas estava ali, como a muito ele não via. As
cartas que ela mandara firmemente seguras entre seus dedos sujos, que também
seguravam às de seus companheiros. Tantas vidas perdidas. A
dor e o horror voltando de uma vez só, fazendo seu corpo inteiro tremer e
novamente ele suprimiu as lembranças que insistiam em lhe assombrar, faltava
pouco...
Já podia ver
sua casa quase toda agora e logo sentiu a vista embaçar, tantas emoções
aflorando juntas que ele apenas não conseguia controlar. Esperara
tanto! Orara tantas vezes aos céus para que estivessem bem! Olhara
tantas vezes para as estrelas sonhando que um dia estaria entre eles novamente, entre
as risadas infantis que tanto amava. Entre os braços delicados com que tanto
sonhara.
Temera
tantas vezes que -assim como os companheiros- dele só restasse uma carta com
meia dúzia de palavras que jamais seriam capazes de expressar o quanto sentia
saudade de casa. Temera terminar morto, afogado em seu próprio sangue ou até
mesmo louco, sufocado por sua moral que escorria pelo ralo cada vez que um
gatilho era apertado. Era desumano, era doloroso e acima de tudo
injusto. Só podia rezar e pedir a Deus para lhe perdoar.
Como afinal determinar o lado certo de
uma guerra?
E
quando finalmente estava diante de sua casa, deixou-se cair de joelhos no chão.
As lágrimas rolando pesadas por seu rosto, a fraqueza que ele tanto escondera
finalmente aparecendo, sugando-o. Suas forças esgotadas , sugadas pelos
horrores da guerra. O sofrimento corroendo a alma já ferida enquanto a
voz aumentava mais e mais, como um grito doloroso de uma mãe que perde seu
filho.
E ela, -ah... que saudade dela!-
o ouviu.
Não soube
como, nem porque, mas simplesmente ouviu-o, os pratos que carregava indo ao
chão, o cachorro velho se levantando e começando a latir enquanto seus olhos se
enchiam de lágrimas. Correu para a porta, abrindo-a sem mais demora, sentindo o
chão voltar a estar sob seus pés novamente, pois há muito havia sido
lhe tirado.
Correu,
novamente correu, com tudo que pode, as crianças berrando atrás de si e
acompanhando seu passo enquanto ela simplesmente se jogava contra o corpo forte
que se sacudia em soluços violentos e ela o agarrou, apertando-o contra si com
tudo, as lágrimas agora rolando por seu rosto alvo que se sujava contra a pele
dele. Não muito depois os lábios se encontraram, a saudade tornando o momento
mágico, quase irreal. O amor que os unia crescendo tanto que poderia engolir o
mundo.
Logo
as crianças vieram, escondendo-se atrás dela, temerosas com o
"estranho" sujo que sua mãe abraçava tanto tempo... Ele
as fitou, e elas finalmente entenderam quem estava diante de
si, jogando-se contra o homem sujo, quase atirando-o no chão. E ele não se
importou... Abraçou-as com força, com a mesma força com a qual jurara voltar
vivo, aquela mesma sofrível, desesperada.
Sentiu
novamente os braços dela ao seu redor e sorriu de forma
verdadeira, pela primeira vez depois de muito tempo, falando
baixinho para os três que significavam sua vida:
"Depois de todo esse tempo eu
estou voltando pra casa para vocês"
Porque não
importava o que ele fizera, nem o que deixara de fazer, podia demorar o tempo
que fosse, mas ele sempre voltaria para sua casa, para seu lar, para o
lugar aonde seu coração escolhera morar.
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