Delirium

Posted by Carol Riff On 26.2.14 0 comentários
A chuva caía melancólica, o solo vermelho regado à sangue e morte, testemunha daquela guerra sem vitoriosos. Os corpos se amontoavam em todos os lados e o agouro debochado de um urubu podia ser ouvido. Ele festejava e escarnecia, festejava e escarnecia a estupidez daqueles que se dizem "homens civilizados".

O campo outrora ver e belo agora era uma grande planície carmim, uma tela rubra que agora era lavada aos poucos pelas lágrimas finas e complacentes da chuva, lágrimas tristes do céu. Os anjos choravam, choravam de dor e de impotência.

E no meio de todo o vermelho de toda a dor, de todo o cinza e o vermelho um figura franzina apareceu. Seus longos fios castanhos, caindo-lhe pelas costas alvas, o vestido negro grudando no corpo conforme se deixava molhar. Os pés descalços afundando na terra a cada passo, tornando-se rubros, em um movimento silencioso que quase não se notava que ela estava ali. Todos os seus movimentos eram lânguidos, como se estivesse dançando.

Ela caminhou sem sorrir, ouvindo o som baixo do choro desesperado de um orfão da guerra. Tantos outros haviam sido deixados! Sob o abraço protetor daquela que um dia fora sua mãe -agora apenas mais um cadáver no meio de tantos- estava ela, suja, tingida, manchada do vermelho ocre, agarrada ao corpo de sua protetora, mesmo que não sentisse nada mais vindo dela.

A mulher se aproximou, os cabelos ondulando como se ela fosse uma obra de arte no meio de telas rasgadas e ela sorriu para criança dos olhos assustados, aquela pobre alma maculada pela dor, que encolheu-se em si mesma tentando fugir de algo que não conhecia. Ela não queria sentir mais dor.

"Não tema, criança, logo terminará"

E então estendeu sua mão chamando o pequenino ser. A criança, temerosa, estendeu os dedos machucados e sujos, estranhamente atraída pelos olhos melífluos e gentis à sua frente. Carinhosos até. 

Quando os dedos finalmente se tocaram, a garotinha sentiu frio mas sentiu paz, seguindo com a mulher quando esta a abraçou, erguendo-a e levando-a calmamente em direção alguma, que a criança jamais descobriu porque dormiu antes, embalada pelos braços frios mais cálidos que pudera encontrar.

O corpinho magro continuou ali, a mão estendida como se buscasse a presença de alguém, os olhinhos fechados e um sorriso de paz em seu rosto levemente corado. A morta lhe fora fria, mas também acalentadora. 
READ MORE